Homilia na Quarta-feira de Cinzas

02-03-2022

QUARTA FEIRA DE CINZAS

CATEDRAL DO FUNCHAL

2 de março de 2022


"Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo!"

1. A oração, o jejum e a caridade não são exclusivos da Quaresma. São atitudes que não podem deixar de marcar sempre a vida do cristão. Que seria da vida cristã sem a referência constante a Deus? Que seria da vida cristã sem escutarmos quotidianamente a Palavra, e sem lhe procurarmos responder e corresponder? Que seria da vida cristã sem a constante procura de domínio da nossa inclinação para o mal, do jejum das obras más, e da proclamação de que apenas Deus é o Senhor do que fazemos e do que somos? Como poderíamos ser e viver como cristãos, sem nos darmos conta do irmão que, ali ao nosso lado, necessita da nossa ajuda, material ou espiritual? Ai de nós se apenas na Quaresma rezássemos, jejuássemos e fizéssemos caridade!

Qual atleta, também nós ao longo de todo o ano fazemos ascese, quer dizer, nos treinamos e procuramos percorrer o caminho da nossa vida cada vez mais próximos de Deus, tentando oferecer ao mundo uma cada vez maior semelhança com o plano de salvação que Ele tem para todos e para cada um. Mas, qual atleta, também nós necessitamos de, nestes dias que nos separam da celebração pascal, fazermos nosso esse momento de verdadeira luta entre a Vida e a morte, que é a Páscoa de Jesus. Assim, imitaremos o Senhor que, no deserto, quis viver durante quarenta dias uma preparação mais intensa para a sua vida pública de anúncio do Evangelho e de salvação de toda a humanidade.

2. Ao viver aquela Quaresma de quarenta dias no deserto, Jesus quis assumir e mostrar como, nele, se resumia toda a história de Israel, em particular aquela primeira grande Quaresma do povo de Deus que, saído do Egipto, durante quarenta longos anos, chefiado por Moisés, se preparou para entrar na Terra Prometida.

Como novo povo de Deus, também nós, cristãos da diocese do Funchal, em união com toda a Igreja, começamos hoje estes dias de preparação mais intensa para mais plenamente vivermos as celebrações pascais.

Queremos fazê-lo como povo. Na Quaresma, não se trata apenas de intensificar as atitudes individuais de oração, jejum e penitência que marcam a nossa vida cristã ao longo de todo o ano. É como povo que hoje impomos as cinzas sobre a nossa cabeça, em atitude de penitência. Como afirma o Concílio Vaticano II, "A Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação" (LG 8).

A Igreja - são ainda palavras do Concílio - é "indefectivelmente santa": "Com efeito - afirma o Vaticano II -, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito «o único Santo», amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela para a santificar (cfr. Ef. 5, 25-26), e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de Deus" (LG 39).

Mas porque a Igreja é também constituída por pecadores, isto é, por cada um de nós, fracos vasos de argila (cf. 2Cor 4,7), também ela necessita de viver a purificação, exercitando continuamente, como referíamos há pouco, a penitência e a renovação - o mesmo é dizer: procurando afastar-se do pecado e renovando constantemente, e de um modo mais intenso, a sua vida de fé.

É pois como povo de pecadores que pedimos perdão a Deus e nos propomos emendar as nossas faltas. Pedimos perdão uns pelos outros e uns com os outros, porque as falhas de cada membro do corpo são falhas de todo o corpo. Os pecados de cada membro do corpo são pecados de todo o corpo. Mas, sobretudo, pedimos perdão a Deus: "Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo!" - pedia, na Iª Leitura, o Profeta Joel. "Não entregueis a vossa herança à ignomínia e ao escárnio das nações".

3. Que pecados devemos hoje reconhecer como povo, e deles pedir perdão ao Senhor, procurando emendar-nos ao longo desta Quaresma?

Depois de sair do Egipto e de ter recebido no Sinai as Tábuas da Lei, Israel depressa chegou à fronteira da Terra Prometida. Contudo, a um passo de entrar na Terra da Promessa, o povo hesitou, diante das dificuldades. A Terra era boa, como Deus tinha prometido. Mas, no horizonte, adivinhavam-se lutas e canseiras. O medo apoderou-se de todos (cf. Dt 1,19-33). Foram, por isso, necessários os 40 anos de peregrinação no deserto - percurso de penitência e de purificação, até que, finalmente, Israel se encontrasse capaz de gozar a Terra Prometida.

Creio que também a Igreja vive hoje uma situação semelhante: sabemos da felicidade que a vida com Deus nos traz; sabemos como é bom e agradável vivermos todos como irmãos; sabemos como o respeito pelos ritmos da criação, por cada um de nós e pela nossa vocação divina é essencial para sermos cada vez mais conformes ao projecto que Deus tem para o mundo inteiro.

E, no entanto, experimentamos também o medo da felicidade verdadeira - aquela felicidade que apenas Deus nos pode oferecer! Medo das lutas que temos que travar; medo da dureza do percurso e dos obstáculos que ele contém; medo de não sermos capazes de ir mais longe, contentando-nos com este nosso pequeno mundo, incapazes de viver no horizonte eterno do Evangelho; medo de anunciar e de propor as maravilhas de Deus - aquelas que Ele realiza em nosso favor e ao nosso redor. O mesmo é dizer: medo da fé (essa relação com Deus em que o ser humano se entrega total e livremente nas Suas mãos, deixando-se moldar, configurar plenamente por Ele) - medo do mundo novo que a fé abre diante de nós. Medo da cruz que a existência cristã, tomada a sério, traz sempre consigo dum modo inevitável: "Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Lc 9,23).

A cruz, como afirma Dietrich Bonhoeffer - aquela cruz que o Senhor nos diz para carregarmos - não é constituída pelos limites naturais da nossa condição de criaturas; a cruz que, como discípulos, somos convidados a carregar é antes constituída pelas consequências da nossa resposta total e permanente de fidelidade a Deus e ao Seu projecto. Ou, para sermos mais exactos, e usando as palavras daquele teólogo mártir contemporâneo: "A cruz não é uma adversidade ou um destino difícil, mas é o sofrer que deriva apenas do nosso vínculo com Jesus Cristo. Não é um sofrimento casual, mas necessário. A cruz não é sofrimento ligado à existência natural, mas ao ser cristão" (D. Bonhoeffer, Sequela, 79).

Acompanhando nesta Quaresma Jesus que carrega a cruz pelas ruas das nossas cidades, saibamos, também nós, viver cada vez melhor a nossa condição de discípulos, crescer na fé e, sem medo, sermos com a nossa vida uma presença constante da cruz salvadora de Jesus Cristo.

4. O Papa Francisco convidou toda a Igreja a que, no dia de hoje, jejuasse e orasse pela obtenção da paz na Ucrânia. A Ucrânia e os ucranianos estão, por isso, hoje e ao longo de todos estes dias, particularmente no nosso coração, na nossa mente, nas nossas preocupações. Ao mesmo tempo que rezamos por todos quantos sofrem nesta guerra que julgávamos impensável ainda há pouco, queremos erguer a nossa voz em favor da justiça e da paz.

Aos homens, em particular aos governantes, exigimos que trabalhem e dirijam as nações e os povos na construção de um futuro em que todos possam viver na liberdade, na justiça e na paz. A Deus, pedimos insistentemente que mova os corações dos homens e assim faça cessar o ruidoso barulho da guerra.

E pedimos, por nós e para todos: "Perdoai, Senhor, perdoai ao vosso povo"!

+ Nuno, Bispo do Funchal