Homilia na Festa do Monte

15-08-2020

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA

Nossa Senhora do Monte

15 de agosto de 2020

"Apareceu no céu um sinal grandioso" (Ap 12)

A vida cristã é marcada pela luta, como bem mostrou Miguel Unamuno, no início do século passado (A agonia do cristianismo). Um cristão que não lute - que não lute por viver em cada dia, de um modo mais perfeito, a sua vida com Cristo, retirando dela todas as consequências - acaba sempre por diminuir a fé e a sua própria vida.

É desta luta quotidiana - apresentada a partir do olhar de Deus até à final e definitiva vitória do Cordeiro (quer dizer: de Cristo) - que nos fala o Livro do Apocalipse. Tratava-se, no início como hoje, de incutir coragem aos cristãos e às suas comunidades.

A Iª Leitura (Ap 11,19a-12,1-6a.10ab) apresentava-nos essa luta resumida na contraposição de dois sinais: o sinal da Mulher e da sua descendência, e o sinal do dragão.

A Mulher, revestida do Sol (quer dizer: revestida do esplendor de Deus - revestida de Cristo, diria S. Paulo), tendo a Lua debaixo dos pés (quer dizer: esmagando aquilo que é passageiro, pois a Lua mede os meses e os anos do que passa) e uma coroa de doze estrelas na cabeça (quer dizer: ornada com a história da salvação do Antigo e do Novo Testamento, das doze tribos do povo de Israel e da vida da Igreja assente nos Doze Apóstolos do Cordeiro), a mulher do Apocalipse corporiza o ser cristão. Ela é a nova humanidade dos tempos definitivos, surgida da obra redentora de Cristo realizada na velha humanidade dos tempos iniciais (Gn 3,15).

A Mulher do Apocalipse resume em si a luta, o sofrimento, o esplendor e a fidelidade dos discípulos de Cristo. Como Mãe e Esposa, por entre as dores e alegrias do Mistério Pascal, ela dá quotidianamente à luz, no meio do deserto do mundo, o corpo eclesial do Messias.

Nesta figura da "mulher" do Apocalipse, os cristãos viram, desde muito cedo, a pessoa da Virgem Maria. Maria é, claramente, a Mulher de Caná e do vinho da nova aliança (Jo 2), tal como é a Mulher da cruz que recebe o discípulo como filho (Jo 19,25-27). Em Maria encontramos plasmado o cristão definitivo e perfeito; nela encontramos realizado o "Cristo em nós" com toda a sua glória (Col 1,17).

2. Mas nunca sem a luta do deserto. Maria é a lutadora (a "Senhora das Vitórias", diria a Irmã Wilson). Muitas vezes esquecemos esta faceta da presença da Virgem no meio da história. No entanto, também desde cedo, os cristãos olharam para Maria como a Mulher incansável que, no deserto, derrota o dragão.

Que significa o deserto? O deserto (ἔρημος - מִדבָּר/midbar), é o mundo sem Deus. É, à partida, o lugar da prova, da tentação (Dt 8,14-16). Maria é a mulher que conheceu o deserto na sua vida: "Uma espada trespassará a tua alma" - profetizou o velho Simeão (Lc 2,35), antevendo as dificuldades por que Ela havia de passar até, finalmente, partilhar a cruz do seu Filho (Jo 19,25-27). No deserto, Maria é o sinal de que é possível vencer a provação.

O deserto é o lugar da sede do rosto de Deus, como bem canta o Salmo: "a minha alma tem sede de Ti, como terra árida, sequiosa, sem água" (Sl 63,2.7-8; cf. Sl 143,6). E Maria, no seu percurso da Anunciação à Cruz, é também a figura do crente que caminha na constante procura do rosto de Deus. No deserto, Maria é o sinal da procura por Deus.

Mas o deserto é igualmente o lugar onde se revela a fidelidade divina: "O Senhor encontrou o seu povo numa terra deserta e ruidosa, numa desordem de gritos selvagens; protegeu-o e velou por ele, guardou-o como à menina dos seus olhos" (Dt 32,10). Por isso, o deserto é o lugar onde se manifestam as "impossíveis possibilidades" de Deus, a sua ternura protectora, a fidelidade com que se mostra o seu amor. É o lugar do milagre. E basta-nos reler o Magnificat para nos darmos conta das grandes coisas que o Omnipotente realizou na Virgem e por meio dela. No deserto, Maria é o sinal do milagre, das obras maravilhosas que Deus faz connosco e por nós.

Finalmente, o deserto é o lugar da escuta da Palavra. É o lugar onde nada existe que nos distraia e, assim, onde Deus nos pode falar ao coração, onde podemos recordar o seu amor, escutar o que tem para nos dizer e acolhê-lo. E Maria, a Virgem da escuta e da contemplação, mostra como nos podemos deixar moldar pela Palavra de Deus. No deserto, Maria é o sinal da escuta e do acolhimento da Palavra divina.

3. Vivemos, todos nós, neste mesmo momento, um terrível tempo de deserto. Começou mesmo por ser um tempo de confinamento, de silêncio, de ruas literalmente desertas e abandonadas. E se hoje a vida parece querer regressar ao normal - mesmo sendo um "estranho normal" -, este nosso tempo continua a ser um tempo de luta entre Deus e o que procura aniquilar o homem (porque Deus está sempre do lado do Homem!). Um tempo em que a vida humana se pressente desamparada e frágil, perante um inimigo invisível, traiçoeiro - um "dragão" invisível mas não menos apocalíptico.

É este um deserto que sussurra aos nossos ouvidos que Deus não existe ou que podemos passar sem Ele, e que devemos também ignorar ou desconfiar do próximo - ignorar que nos encontramos todos na mesma barca, como recordou o Papa Francisco.

Contudo (quase em contradição) este é, também, um deserto onde, de um modo particular, muitos sentiram a sede de Deus, a necessidade de um sentido para a existência, a procura do rosto de Alguém acima do mundo passageiro e frágil.

Um deserto onde muitos perceberam que Deus não está adormecido mas é antes um Deus próximo: próximo no rosto do próximo; próximo no rosto de quem partilhou e partilha connosco estas horas de incerteza; próximo no trabalho daqueles que nos hospitais e nos outros serviços do que se convencionou chamar a "linha da frente" cuidam de todos, não raras vezes arriscando a própria vida. Próximo na comunidade cristã e nos seus pastores. Um deserto onde a voz de Deus se faz escutar e nos bate à porta, pedindo que O acolhamos e deixemos entrar.

4. De um modo muito particular nós, madeirenses e portosantences, temos razões para reconhecer esta proximidade divina no meio daquilo que foram os desertos destes meses. Não deixou este tempo de ser tentação, prova, sede. Mas não deixou, igualmente, de ser marcado pelo Sinal da Mulher, de Nossa Senhora - de Nossa Senhora do Monte.

Os milagres, com efeito, nem sempre consistem em acontecimentos que se nos impõem à custa de luzes ou de sons esmagadores, de tremores interiores ou exteriores. Os sinais da presença de Deus ao nosso lado consistem, a maioria das vezes, na brisa suave e ligeira (1Re 19,12-13) - no trabalho aplicado, competente, sereno e cheio de entrega. São, por isso, sinais que nos convidam a abrir atentamente o coração. Mas nem por isso deixam de ser sinais divinos, admiráveis.

No tempo do confinamento, há cinco meses atrás, entregámo-nos, uma vez mais, como povo de Deus, nas mãos maternas de Nossa Senhora do Monte. E creio que, ao longo destes meses, Ela foi, uma vez mais, um sinal para nós: passámos todo este tempo sem qualquer morte entre os habitantes das nossas ilhas.

Poderá acontecer que, nos tempos futuros, sucedam mortes ou uma qualquer outra desgraça causada ainda por esta pandemia que teima em não desaparecer. Mas nem por isso havemos de fechar o nosso coração, perdendo a graça de nos maravilharmos e de perceber Deus bem próximo, por meio da intercessão de Nossa Senhora do Monte.

Por isso hoje, nesta sua festa, queremos agradecer-lhe. Queremos entregar-nos com ainda mais fervor. Queremos confiar-lhe a nossa vida e a dos nossos. Queremos fazer o propósito de assumir a nossa vida de cristãos com mais intensidade e verdade - que o mesmo é dizer: a vontade de travar com mais decisão a luta cristã, sempre sob a protecção e Sinal grandioso desta Mulher, revestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, vencedora, em Cristo e com Ele, dos desertos que nos procuram aniquilar e a toda a humanidade.

+ Nuno, Bispo do Funchal