Homilia na Festa de NSa. do Monte 2022
SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA
15 Agosto 2022
"O templo de Deus abriu-se no Céu
e a arca da aliança foi vista no seu templo" (Ap. 11,19a)
1. Depois de uma pandemia, uma guerra. Depois de uma guerra, o aumento do custo de vida que torna tudo mais difícil, e impõe, de novo, o regresso da austeridade. E poderíamos continuar a descrição do momento em que vivemos com a referência à desorientação social, à mentira que campeia, à incapacidade de encontrar soluções humanas para a vida, à desumanidade do trabalho que torna escravos a tantos seres humanos... e tantos outros sintomas duma diminuição do humano e da sua dignidade que pressentimos em nós e à nossa volta! Se para alguns (poucos) a vida é um mar de rosas (mas será que é?), para a esmagadora maioria, a existência é uma luta constante por um bem-estar mínimo, senão mesmo pela sobrevivência.
Alguns dirão que não há nada a fazer, e que o hoje nos deve bastar: é o "carpe diem", o "aproveitar o momento", que nos convida a retirar do presente todo o gozo e prazer que ele nos pode oferecer, uma vez que o futuro é desconhecido e incerto.
Por isso, a questão não é apenas legítima, mas impõe-se: podemos ter esperança? Podemos olhar o futuro com alguma confiança e deitar os pés ao caminho? Podemos esperar que Deus nos conceda a sua graça (o seu amor abundante e gratuito) em cada momento da nossa vida, de modo que esta possa ter um sentido digno dum ser humano? Podemos ter esperança?
2. A solenidade que hoje celebramos, a Assunção de Nossa Senhora ao Céu, mostra que sim: é possível a esperança.
Para se revelar ao ser humano, Deus escolheu o caminho da encarnação: Ele próprio se fez um de nós ("Em tudo igual a nós, excepto no pecado", diz a Carta aos Hebreus). Ao fazer-se carne, Deus viveu numa família, cresceu numa pequena cidade da Galileia, aprendeu os seus usos e costumes. Fez-se ver, escutar, tocar... Fez seus os sofrimentos e as alegrias da humanidade. Com um objectivo: "convidar-nos e admitir-nos à comunhão com Ele", como afirma o Concílio Vaticano II (cf. DV 2).
Tudo isso só foi possível porque o Verbo divino se fez carne no seio da Virgem Maria. Maria de Nazaré é, por isso mesmo, olhada pelos primeiros cristãos como a verdadeira "Arca da Aliança": assim como a arca construída por Moisés e que continha as tábuas da Lei era o sinal da presença de Deus no meio do seu povo, acompanhando-o ao longo do seu peregrinar pelo deserto em direcção à Terra Prometida, assim também a Virgem Maria (não já um objecto como era a arca, mas uma pessoa, uma mulher!) é aquela que traz consigo, em si, não já dois pedaços de pedra mas o próprio Deus connosco, Jesus Cristo, que nos acompanha e dá sentido à nossa vida.
É como Arca da Aliança que Maria vai ao encontro de Isabel; e é tomando consciência de ser Arca da Aliança, que ela canta a presença de Deus. Acabámos de o escutar no excerto do evangelho de S. Lucas há pouco proclamado. Maria canta as maravilhas do Deus connosco, e anuncia as transformações que esse acontecimento começava a provocar: "Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos; derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes; aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias".
A esperança é possível não como um sonho ou uma ideia, nem sequer como um sentimento. É possível porque a Virgem Maria deu carne ao Deus connosco; deu carne ao falar, ao agir, à pessoa de Deus; ao amor divino em abundância que é Jesus de Nazaré. A presença concreta do amor de Deus feito carne, feito homem como nós, é fonte de esperança - é "a" fonte da esperança: não estamos abandonados às nossas forças humanas que são fracas; não estamos votados à nossa sabedoria humana, que é pequena, ainda que orgulhosa; não estamos condenados aos nossos sentimentos, sempre manchados pelo egoísmo.
Quando nos deixamos encontrar pelo Deus-connosco, que é Jesus de Nazaré - tal como sucedeu com aqueles doze pescadores do Lago, e com tantos outros ao longo da história - quando nos deixamos encontrar por este Deus que se faz ver, escutar, tocar (Deus feito homem) como não ter esperança? Mesmo no meio do sofrimento maior; mesmo quando tudo nos parece derrotar e esmagar (que o digam os mártires - aqueles dos primeiros anos e aqueles de hoje) quando tudo nos parece derrotar e esmagar, eis que uma abundância de vida transforma e dá novo sentido à existência, nos ajuda a sermos melhores, nos dá forças para sermos nós mesmos e vivermos e ultrapassarmos as dificuldades.
Maria poderia ter dado à luz a Jesus Cristo, poderia tê-lo ensinado a viver na fé de Israel e ter-lhe mostrado os costumes do seu povo, mas poderia ter permanecido em Nazaré, escondida, esquecida. Continuaríamos todos imensamente gratos a Maria de Nazaré, mas ela nunca teria sido a afirmação da esperança.
Ao contrário, a Virgem não se remete ao simples papel da maternidade. O seu lugar de Mãe continuará sempre presente, mas Maria tomará ainda um outro lugar, igualmente único: ela quis ser discípula do seu Filho. Nela, não estava tudo realizado, ao dar à luz o Filho de Deus. De início, Ela não conhecia todas as consequências da sua maternidade divina. Foi-as descobrindo e vivendo, com a mesma disponibilidade com que pronunciou o "Sim" ao anúncio do Anjo.
A relação tão íntima e singular que Maria tinha com seu Filho foi desenvolvida, aprofundada na verdadeira peregrinação de vida que Nossa Senhora fez ao longo da sua existência. Uma peregrinação que passou pela cruz. Uma peregrinação que continuou no acolhimento do discípulo amado e de todos os outros discípulos, como mostra o momento de Pentecostes, quando encontramos a Virgem no seio da Igreja nascente, recebendo o Espírito Santo.
Maria diz-nos, por isso, que, quando nos deixamos encontrar por Jesus Cristo; quando Ele se torna uma presença abundante de vida, não podemos também nós ficar parados, deixar de peregrinar - que o mesmo é dizer: de em cada dia sermos mais de Jesus Cristo. Há sempre um crescimento a realizar, diariamente, em cada cristão, como sucedeu em Maria. É a graça divina a transformar-nos, a converter-nos, a moldar a nossa existência. E nós, transportados por esta presença, não podemos deixar de esperar: esperar que o amor divino se torne cada dia mais concreto na nossa vida, que ele nos ensine a caminhar, nos dê a força e a ousadia necessárias para nos deixarmos transformar por ele e nele. É possível a esperança. E não é um sonho vão. Mostram-no os santos, aqueles que - como o Beato Carlos de Áustria, cujo corpo é venerado e guardado nesta Igreja do Monte - se foram deixando transformar, moldar, ainda que no seio dos maiores sofrimentos.
3. Mas poderá a esperança conduzir-nos ainda mais longe? Com Cristo peregrinamos, mas para onde? Que sentido tem o nosso caminhar para Ele e com Ele?
Também nisso a Virgem Maria é para nós exemplo. Unida estreitamente a seu Filho; transformada por Ele; conduzida por Ele - toda ela docilidade e abandono à vontade do Pai - a peregrinação existencial de Maria tem uma meta: a glória de Deus, dada a partilhar ao discípulo que assim se deixa converter pelo Senhor.
Sim: o nosso destino; a nossa meta; o objectivo da nossa vida não é uma glória passageira - aquela glória momentânea que os Meios de Comunicação oferecem, ou que os chamados "Ídolos da moda" prometem. Não: tudo isso é demasiado pequeno, insuficiente para aquele que se deixou encontrar por Cristo. A nós apenas nos é suficiente o Céu, a glória de Deus. Não porque sejamos melhores que os outros (mais sábios, mais fortes ou mais velozes) mas porque, como Maria, trazemos connosco, em nós, o Deus feito Homem. Trazemos connosco o Céu!
Não nos é permitido apenas sonhar, idealizar uma eternidade feliz, e viver desse sonho. Olhando para Nossa Senhora, elevada ao Céu, já vemos realizada, alcançada, a meta que esperamos. Sim: o Céu é, literalmente, o nosso limite. Mesmo no meio de sofrimentos, de desilusões, de incapacidades e tristezas - e também por entre alegrias e vitórias, festa e contentamentos - podemos ter esperança. Não é sonho, é a realidade da Virgem Maria, tal como hoje a celebramos.
Tinha, por isso, toda a razão Charles Péguy quando dizia: "É a esperança que faz andar o mundo. E que o arrasta" [Ch. PÉGUY, Os portais do mistério da segunda virtude, 22].
Por intercessão de Nossa Senhora do Monte, peçamos ao Senhor - para nós e para o mundo inteiro - a graça de crescermos, à semelhança da Virgem Maria, na virtude da esperança, na certeza de que o Céu, a vida com Deus e em Deus, é o nosso destino.
+ Nuno, Bispo do Funchal