Missa do IV Domingo da Quaresma

22-03-2020

IV DOMINGO DA QUARESMA A

22 Março 2020


HOMILIA

1. Deus não vê como o homem; o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração" (1Sam 16,7). Toda a liturgia deste III Domingo da Quaresma é marcada pelo "ver". E isso significa, para todos, o convite a nos deixarmos interrogar e confrontar por esta palavra de Deus. Como é que vemos? O que significa para nós "ver"?

Deus não olha às aparências, dizia-nos a Iª leitura. Ao contrário dos homens que julgam pelas aparências, Deus vai além daquilo que é exterior. Ele conhece. Conhece a verdade de cada um e de todos.

Não raras vezes vivemos a partir das aparências. O nosso mundo vive a partir das aparências. Cuidamos delas como se fossem a realidade central. O mundo em que vivemos é um pouco como no cinema. Existe o cenário: as casas parecem casas; o mar parece mar; as grandes tempestades parecem tempestades - mas, na realidade, são casas feitas de cartão; o oceano é uma pequena poça; as tempestades são filmadas num copo de água. E os sentimentos, a vida e a morte, tudo é fingido, representado por um actor. Tudo se destina a criar em nós uma ilusão, para despertar os nossos sentimentos, criando uma espécie de mundo artificial em que gostamos de viver. Contudo, passados os momentos em que quase estamos dentro do ecrã e da acção, tudo desaparece. Assim é o mundo em que vivemos - ou, pelo menos, aquele em que vivíamos até há alguns dias... Parecíamos os donos deste mundo; parecia que não precisávamos de Deus; parecia que nada nos faria tremer... E bastou um pequeno vírus para colocar o mundo inteiro em quarentena!

Deus não vê apenas as aparências. Não se contenta com elas. Deus vê o que vai no coração do ser humano. Ele não olha para o cenário; não olha para atitudes e vidas fingidas: Ele conhece os pensamentos, os sentimentos mais íntimos e sinceros de cada um e de todos.

Na Iª leitura, o Profeta, diante do mais velho dos filhos de Jessé, olhando para o seu aspecto e para a sua estatura elevada, pensava ter encontrado o rei que Deus tinha escolhido para Israel. E o mesmo aconteceu com todos os outros seus irmãos. A todos Deus rejeitou. Faltava apenas o mais novo, que nem sequer estava presente, e em quem ninguém tinha pensado. Mas era esse miúdo frágil e pequeno que Deus tinha escolhido. Não o tinha escolhido arbitrariamente mas porque "o Senhor vê o coração".

Como é que nós vemos? Como é que nós nos vemos? Como é que vemos o mundo que nos rodeia? Como olhamos para Deus? Sim: também Deus pode ser vítima deste nosso modo humano de gostar de aparências! Facilmente nos podemos enganar, julgando que Deus é como nós, e que fica satisfeito com aquilo que aparentamos!

2. O cego do evangelho vivia na escuridão desde o nascimento. Vivia no seu mundo imaginário. Jesus, ao fazer o lodo que lhe colocou nos olhos, repetiu o gesto de Deus ao criar o homem a partir do barro. Jesus recriou aquele homem. Deu-lhe a visão; permitiu-lhe ultrapassar a sua condição de invisual.

Mas Jesus foi mais longe: "Tu acreditas no Filho do homem?". Ele respondeu-Lhe: Quem é, Senhor, para que eu acredite n'Ele? Disse-lhe Jesus: Já O viste: é quem está a falar contigo. O homem prostrou-se diante de Jesus e exclamou: Eu creio, Senhor" (Jo 9,38). Não bastou a Jesus dar àquele homem a possibilidade de ver as realidades exteriores: Jesus deu-lhe a "visão da fé".

Porque, de facto, a fé permite-nos ver tudo de um outro modo. Permite-nos ver a vida e a morte; a doença ou a simples e feliz existência; tudo o que nos rodeia e a nossa história; permite-nos ver tudo de forma diferente: a fé permite-nos ver tudo com os olhos de Deus. E isso é o que torna um cristão diferente de todos os outros seres humanos: o encontro com Jesus muda o nosso modo de ver a realidade. Passamos a ver com os olhos de Deus. Deixamos, como aquele homem, de estar cegos, fechados num mundo imaginário, que pensamos ou desejamos, que sonhamos.

E isso mesmo significa o crescimento na fé: crescer nesta capacidade de ver com os olhos de Deus.

Não ficamos com um qualquer novo sentido mágico mas, de facto, vemos tudo de modo diferente. Muitos filmes e séries da actualidade apresentam personagens dotados de poderes especiais, e que vêem mais que as aparências. Mas nós, cristãos, sabemos que não é preciso um qualquer poder ou dom especial: basta ter fé em Jesus. Basta ser cristão: a vida passa a ser um dom de Deus; a nossa história deixa de ser fruto de um destino, e passa a ser uma construção que fazemos com Deus; o outro deixa de ser um obstáculo ou um objecto, para ser um irmão; a própria natureza deixa de ser um mero recurso natural, para ser criatura que Deus nos deu para O louvarmos...

3. Uma última questão creio que devemos também colocar-nos: como é que nós queremos que Deus nos veja? Quando Ele olha para nós, que vê Ele? Alguém preocupado com a simples aparência ou alguém que procura, de verdade, caminhar ao Seu encontro?

Esta crise que estamos a viver vem em nossa ajuda - nem tudo é mau! - e, de verdade, coloca-nos todas estas questões. Como vemos e vivemos este momento por que estamos a passar? Com que olhar o vemos? Com o nosso olhar de seres humanos, soberbos e iludidos, ou com o olhar de Deus? Como vemos o nosso próximo? Em quem colocamos a nossa esperança?

Aos Efésios (como escutávamos na IIª leitura), S. Paulo dizia: "Outrora vós éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz, porque o fruto da luz é a bondade, a justiça e a verdade. Procurai sempre o que mais agrada ao Senhor".

E isto digo, também eu, a todos vós, irmãos: sois luz no Senhor; iluminai tudo o que está à vossa volta com a luz da fé. O mundo, a história e as crises de que ela é feita podem ser vistos e vividos a uma outra luz, desde que nos deixemos iluminar pelo Senhor e abramos os olhos da fé que Ele nos deu no momento do nosso baptismo.